Algas já viviam em simbiose com corais há 210 milhões de anos e são bem mais antigas e diversas do que se pensava
ANDRÉ JULIÃO |
ED. 251 | JANEIRO 2017
Os recifes de coral são conhecidos pela grande variedade de espécies que
vivem ao seu redor. Ancorados no leito marinho, onde constroem enormes
colônias, os corais, animais parentes das medusas, estão normalmente
cercados por algas e peixes coloridos, além de incontáveis
microrganismos, formando grandes ecossistemas. Para a maior parte dos
corais de água rasa, no entanto, nenhum outro ser vivo é mais importante
do que as zooxantelas, um grupo de algas microscópicas que vivem dentro
deles e funcionam como verdadeiros órgãos. Ao reciclarem substâncias
excretadas pelos corais como a amônia e liberarem alimento em forma de
açúcares, as zooxantelas não só garantem a própria sobrevivência como a
de seus hospedeiros, que não têm recursos para realizar esses processos
fisiológicos. Dois trabalhos mostram que essa associação data de pelo
menos 210 milhões de anos e que as algas simbióticas são ainda mais
antigas do que isso – e sua diversidade é muito maior.
Grande Barreira de Corais da Austrália: mapeamento genético identificou diversidade de microrganismos |
Ao comparar corais atuais do Brasil com fósseis que viveram no mar de
Tétis, oceano que existiu quando os continentes formavam um só bloco, a
Pangeia, um grupo de pesquisadores da Polônia, da Suíça, dos Estados
Unidos e do Brasil conseguiu demonstrar que essa relação já existia no
período Triássico, 210 milhões de anos atrás, quando surgiram os
dinossauros. A simbiose, dizem os pesquisadores, garantiu que os corais
se tornassem aptos a sobreviver em um período em que a água do mar de
Tétis era pobre em nutrientes. “Essas algas precisam basicamente de luz e
dióxido de carbono, pois fazem a fotossíntese e geram o próprio
alimento. Nesse processo, reciclam substâncias danosas aos corais e
ainda proveem açúcares e lipídios”, explica o oceanógrafo Marcelo
Kitahara, professor do Departamento de Ciências do Mar da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), colaborador do Centro de Biologia
Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar-USP) e um dos autores do
artigo publicado em novembro na Science Advances.
Corais do passado
Não dá para saber quais algas viveram nos corais em tempos remotos, mas é possível inferir sua presença pela assinatura deixada por uma combinação de elementos químicos depositados quando os corais ainda eram vivos há mais de 200 milhões de anos. São diferentes tipos (isótopos) de carbono, oxigênio e nitrogênio detectados graças ao ótimo estado de preservação de fósseis coletados na província de Antália, na Turquia, em uma região montanhosa onde antes havia o mar de Tétis. “Por sorte, as rochas ficaram bem isoladas da água, que normalmente penetra nelas”, diz o geólogo Jaroslaw Stolarski, da Academia Polonesa de Ciências, em Varsóvia, um dos autores do artigo da Science Advances. A água contribui com a diagênese da rocha, que nesse caso é a transformação da aragonita, mineral rico em informações do fóssil, em calcita, do qual os especialistas aproveitam pouco ou nada. “Se quisermos extrair informação original do esqueleto do coral, ele tem de estar bem preservado. A presença de aragonita é uma prova dessa preservação por conter todas as assinaturas de isótopo originais”, explica.
Coral fóssil do Triássico… |
Os pesquisadores então compararam os isótopos encontrados nos fósseis
com os presentes em corais simbióticos e assimbióticos atuais na ilha
dos Búzios, no arquipélago de Ilhabela, em São Paulo. “Para fazer essa
comparação, além de fósseis bem preservados era preciso ter corais
atuais, vivos, sob as mesmas condições de luminosidade e temperatura da
água, disponibilidade de alimento, entre outros”, diz Kitahara. Depois
de muita procura, o grupo encontrou nas águas paulistas uma comunidade
bastante diversa vivendo em um espaço de meros 5 metros quadrados (m2). Só assim se diminuiria ao mínimo a probabilidade de outros fatores influenciarem a presença de certos isótopos.
As análises mostraram que tanto os fósseis quanto os corais simbióticos
atuais possuem os mesmos tipos de carbono, nitrogênio e oxigênio. A
diferença é marcante em relação aos corais modernos que não realizam
simbiose, e não têm os mesmos isótopos. O porquê da presença deles nos
corais simbióticos não é totalmente claro, mas sabe-se, por exemplo, que
um tipo de nitrogênio presente nos corais simbióticos deriva da amônia
excretada pelo coral e absorvida pelas zooxantelas.
Outra análise que reforça os resultados é a da microestrutura de
crescimento dos corais. Os pesquisadores partiram da premissa de que os
corais simbióticos do passado cresciam da mesma forma que os que vivem
hoje em associação com microrganismos: com regularidade constante, pois
seu metabolismo está atrelado ao das algas que vivem em seu interior e
dependem da luz do Sol para fazer a fotossíntese. “As microestruturas
registram o ritmo fisiológico dos corais. Os simbióticos geralmente
seguem o ritmo das algas, enquanto os assimbióticos não seguem os
períodos de presença ou ausência de luz solar”, explica Stolarski. Por
isso, os corais sem simbiose têm um padrão irregular de crescimento,
enquanto os simbióticos são bastante regulares, seguindo períodos de dia
e noite.
Algas do presente
…e exemplar vivo, com atividade de algas simbiontes em pontos marrons (ver detalhe) |
As algas que vivem dentro dos corais, no entanto, já existiam bem antes deles. Um mapeamento genético do microbioma existente atualmente no esqueleto de corais simbióticos da Grande Barreira de Corais da Austrália, maior formação desse tipo no mundo, rastreou a existência de algumas linhagens de algas ainda no período Ordoviciano, cerca de 500 milhões de anos atrás. “Além de mais antigas, agora descobrimos que elas são muito mais diversas do que se pensava”, explica a bióloga brasileira Vanessa Rossetto Marcelino, atualmente concluindo o doutorado na Universidade de Melbourne, na Austrália, e autora de artigo publicado em agosto na Scientific Reports em coautoria com seu orientador, o biólogo Heroen Verbruggen. Vanessa analisou DNA retirado de amostras de esqueleto de corais vivos e encontrou mais de uma centena do que podem ser novas espécies de algas ou mesmo linhagens inteiras.
Enquanto os corais são visíveis a olho nu e já foram bastante
estudados, pouco se sabe sobre as algas. A razão para essa compreensão
ainda incipiente é a dificuldade de identificar a diferença entre as
espécies de algas, tanto com microscópio quanto por meio de
sequenciamento genético. “O formato delas é sempre o mesmo e os
marcadores moleculares existentes têm baixa resolução, ou seja, não dão
conta de caracterizar uma grande parte da biodiversidade”, explica
Vanessa.
Por isso, ela e Verbruggen usaram uma combinação de quatro marcadores
para analisar o DNA retirado de 132 amostras de esqueletos de coral.
Esse esforço permitiu identificar uma gama de organismos, muitos nunca
antes encontrados em corais. Além das algas, grupo que compõe a maior
parte desse microbioma, foram detectados ainda alguns fungos e
bactérias. Enquanto a literatura científica dava conta de algumas poucas
espécies habitantes de corais, os pesquisadores da Austrália
encontraram mais de 120, incluindo famílias inteiras ainda não
descritas. A diversidade encontrada sugere ainda que algumas linhagens
são até mais antigas do que os próprios corais e já existiam 250 milhões
de anos antes de começarem a habitar esses organismos. Análises de
fósseis já haviam mostrado evidências da presença desses seres em
conchas e estromatoporoides, esponjas do mar que viveram cerca de 500
milhões de anos atrás. “Os corais foram invadidos por mais de 20
linhagens diferentes de algas em momentos distintos da evolução delas”,
diz Vanessa.
Presente em quase toda a costa brasileira, Astrangia rathbuni é um exemplo de coral sem simbiose |
O gênero Ostreobium de algas, que até então acreditava-se
ter três espécies, mostrou-se na verdade uma linhagem com mais de 80
unidades taxonômicas, um nível próximo ao de espécie na classificação.
Em seus 500 milhões de anos de existência, elas sobreviveram inclusive à
grande extinção do período Permiano, aproximadamente 300 milhões de
anos atrás, quando cerca de 90% das espécies marinhas e 70% das
terrestres desapareceram da Terra. Logo depois, no Triássico, elas se
diversificaram, justamente quando surgem os corais com simbiose. A
descoberta, além de indicar a eficiência do uso de múltiplos marcadores
para estudar os microbiomas dentro de corais, abre caminho para
investigações mais específicas acerca dos seres que habitam os
esqueletos de coral e do seu papel na vida destes.
O grupo de pesquisadores do qual Vanessa faz parte na Austrália já
está aplicando a metodologia de sequenciamento com múltiplos marcadores
para estudar se diferentes espécies de coral estão associadas com
linhagens específicas de algas. Além disso, querem saber como a
associação entre esses organismos muda em função de condições ecológicas
e das espécies envolvidas. “Nós abrimos um livro, agora é possível
estudar as páginas dele”, conclui Vanessa.
FRANKOWIAK, K. et al. Photosymbiosis and the expansion of shallow-water corals. Science Advances. 2: e1601122. 2 nov. 2016.
MARCELINO, V. R. & VERBRUGGEN, H. Multi-marker metabarcoding of coral skeletons reveals a rich microbiome and diverse evolutionary origins of endolithic algae. Scientific Reports. 6: 31508. 22. ago. 2016.
FONTE: Revista Pesquisa FAPESP
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