Expansão do glaciar de Belvedere, no norte da Itália, modificou paisagem, ameaçou vilarejo e, mesmo após ter cessado, ainda intriga pesquisadores.
Avanço intenso de geleira assustou o pequeno vilarejo de Macugnaga, no norte italiano (Foto: Archivio Distretto Tursistico dei Laghi).
Em tempos de aquecimento global, a geleira de Belvedere, que lambe as portas do vilarejo de Macugnaga, no norte da Itália, é um caso raro: durante quatro anos, ela se expandiu, enquanto seus vizinhos encolheram.Embora tenha ocorrido há mais de dez anos, entre 2001 e 2004, o fenômeno modificou a paisagem da região e ainda intriga pesquisadores.
"De alguma maneira a água entrou na geleira através de fendas e, por causa de uma espécie de efeito lubrificante, se espalhou, levando à expansão", afirma o glaciologista Gianni Mortara, do Conselho Nacional de Pesquisa italiano.
Um dos mistérios é que, mesmo após parar de crescer, a geleira segue um ritmo de descongelamento bem mais lento que o registrado na região – nos Alpes suíços, por exemplo, o intenso degelo tem revelado restos mortais de alpinistas desaparecidos há décadas.
A Belvedere é uma das formações analisadas pelo programa europeu Glaciorisk, que avalia os riscos das principais geleiras dos Alpes. Cientistas instalaram estações meteorológicas, câmeras e aparelhos para capturar e estudar seus movimentos.
Deslizamentos formaram camada de pedras sobre a geleira, denominada 'glaciar negro' (Foto: Archivio Distretto Tursistico dei Laghi).
A geleira está localizada aos pés do Monte Rosa, a montanha mais alta da Itália e a segunda dos Alpes, com 4.634 metros de altura.
Seu súbito crescimento, iniciado em 2001, assustou a pequena Macugnaga. O gelo avançava a uma média de cem metros por ano rumo ao vilarejo, contra os 40 metros históricos, superando as encostas laterais.
No topo do glaciar, a aceleração era ainda maior – chegava a 200 metros anuais –, por causa da inclinação.
Um lindo e perigoso lago
Quando o fenômeno chegou ao fim, em 2004, deixou entre suas heranças um lago de 150 km² e 57 metros de profundidade.
Com seus quase 3 milhões de metros cúbicos de água, ameaçava transbordar e inundar a região, levando pesquisadores e engenheiros a escavar saídas artificiais para esvaziar essa espécie de represa natural.
Última medição registrou perda de três metros de altura, metade da média registrada nas geleiras da região (Foto: Archivio Distretto Tursistico dei Laghi).
Durante o processo, os cientistas lançaram produtos químicos não poluentes na água para ver onde ela iria parar. Em quatro dias, essas substâncias foram identificadas nos riachos Fontanone e Anza. Em menos de dois anos, parte do volume foi transferido aos dois córregos.
Hoje, há apenas um chão de pedras no local onde o lago se formou. Ou, nos dias de chuva, uma grande poça de lama.
Camada de pedra
Ao começar a perder espessura, a geleira virou palco de desmoronamentos e avalanches, que modificaram sua morfologia, tornando o monitoramento ainda mais complexo.
Segundo Silvio Senno, professor de geologia da Universidade de Pavia, massas geladas se descolavam e escorregavam pelos flancos, levando junto muitas pedras. "Como uma esteira rolante", explica, "levando as rochas até o vale".
Com esses deslizamentos, foi formada uma camada de pedras sobre a geleira, denominada "glaciar negro". Essa capa, de certa forma, ajuda a explicar o ritmo menor de descongelamento: ela protege o gelo da radiação solar.
A medição da Beldevere é feita sempre no começo e no fim do verão europeu, entre junho e setembro. A última registrou a perda de três metros de altura, metade da média registrada nas geleiras da região.
A cobertura de pedra esconde um colosso de gelo com cerca de 30 metros de altura, o equivalente a um prédio de 10 andares. Notá-lo não é tarefa fácil: ele fica mais ou menos 30 centímetros abaixo do manto escuro.
Sondas a vapor quente são usadas para derreter e perfurar o gelo subterrâneo e instalar instrumentos que monitorem o movimento do glaciar.
Bosque marca limite entre geleira e pastagens; árvores só voltaram a crescer recentemente (Foto: Gianni Boschis)
Embora ocorra mais devagar, sua diminuição também é considerável. "Está se alinhando com os outros glaciares. Em dez anos, perdemos aqui 20 metros de espessura. Eu deveria estar coberto de gelo e não em pé sobre ele", diz Roberto Seppe, professor de geologia da mesma universidade, em visita ao local.
A volta do bosque
Um pequeno bosque de pinheiros marca o limite entre a geleira e a pastagem dos rebanhos de Macugnaga.
É um retorno: as árvores só voltaram a crescer depois de o gelo parar de avançar pelo campo. São um exemplo de como a paisagem tem mudado em torno do Belvedere.
Gianni Mortara estuda o glaciar desde 1970. E mesmo assim conta não poder afirmar que o conhece como a palma da mão, pois a geleira não para de se mover.
Uma prova disso é que as trilhas mudam a cada semana – além de muitos pesquisadores, Macugnaga atrai alpinistas, esquiadores e adeptos de trekking.
"A área do Belvedere tem cerca de 4,5 quilômetros quadrados. A geleira está viva, mas não sabemos quanto tempo resistirá. Notamos uma rachadura importante na base da montanha, que pode cortar a principal linha de abastecimento", afirma o especialista.
Esse glaciar pode ter destino semelhante ao de vários outros na região: se dividir em dois. Em 1962, eram 824 geleiras na Itália. Mas por causa dos desmembramentos de geleiras, provocados pelo aquecimento global, hoje são 896.
Além disso, reduziram sua superfície em 40% em três décadas, segundo dados da Universidade de Milão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário