Transitando entre ecologia, políticas públicas e educação, a aposentadoria não é motivo para repouso
A paixão de Yara Schaeffer Novelli pelos manguezais está longe de ser
romantismo diante de uma paisagem bucólica ou de animais peculiares. Sua
visão abrange a paisagem, a flora, a fauna, o mar, a terra, as pessoas,
a economia, a legislação. Para ela, o ecossistema na fronteira entre o
continente e o oceano, que funciona como berçário para uma infinidade de
organismos marinhos, só pode ser enxergado e trabalhado com uma visão
múltipla.
Foi isso que ensinou aos estudantes no Instituto Oceanográfico da
Universidade de São Paulo (IO-USP), onde montou o laboratório batizado
como Bioecologia de Manguezais (Bioma), que geriu até a aposentadoria em
1998.
Foto de Léo Ramos
De lá para cá mantém atividades de docência e orientação, tanto no IO
como no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental, também da USP, e
no âmbito da entidade não governamental que criou para continuar sua
batalha. Nestes tempos em que o uso desordenado da terra e as mudanças
climáticas ameaçam o território dos manguezais, não dá para descansar.
Por que você escolheu os manguezais, que muita gente descreve como um lamaçal malcheiroso?
Começou com uma visão de recursos pesqueiros. É um berçário, uma área
abrigada, protegida, cheia de larvas e animais jovens. No meio daquelas
raízes meio estranhas há jovens de peixes de valor comercial e as
primeiras fases de vida de camarões. Esse crustáceo se reproduz em mar
aberto e entra no estuário para comer e crescer. E tem aquelas árvores
muito esquisitas, vivíparas, das quais caem plantas já brotando, prontas
para se enterrarem na lama. Fui cativada depois de adulta. No mundo da
ocea-nografia não se percebiam essas coisas, então me vali da botânica:
como funcionam essas árvores? Como se instalam nesse lugar? Aí se amplia
o horizonte e a complexidade aumenta. Fui de trás para a frente: do
produto do manguezal para o grande cenário.
No início você estudava fauna litorânea, não necessariamente de manguezal. Como foi parar lá dentro?
Em 1976 participei de um simpósio sobre oceanografia biológica em El
Salvador, quando a comunidade científica estava alarmada com a perda dos
manguezais para a criação de camarão, a carcinocultura. Eu tinha meu
universo “mar, mar, mar” e pensei: “Temos muitos manguezais no Brasil,
como estarão?”. Ao voltar, me propus a ver quanto deles estaria
comprometido com essas práticas. Na oceanografia não tratavam dos
manguezais e na botânica terrestre também não, porque se atola para
pegar amostras. Pensei: “Temos manguezal do extremo norte do Brasil até
Santa Catarina. Quantos anos eu tenho de vida pela frente? Não vai dar
para estudar tudo isso sozinha”.
Quantos anos você tinha?
Tinha 33 anos. Eu tinha trabalhado com vermes marinhos da família dos
equiurídeos, na região da Ilha Grande [RJ]. Depois havia monitorado a
população de Anomalocardia, o vôngole, numa praia de Ubatuba, litoral
paulista. Estava lidando com dinâmicas costeiras e de repente surge uma
dinâmica ainda mais rápida. Nos dois anos em que medi comprimento,
largura e altura das conchas do vôngole os manguezais estavam acabando e
ninguém os estudava como ecossistema.
Você se manteve em contato com os pesquisadores que conheceu na América Central?
Eles já estavam envolvidos com o estudo do manguezal, com uma
metodologia muito bem estabelecida: Gilberto Cintrón, Samuel Snedaker,
Ariel Lugo, entre outros. Eu teria que aprender muita coisa sozinha e vi
que era melhor pegar fiadores fortes. Eles vieram nos dar cursos,
ajudar a estabelecer locais de trabalho. Começamos a ver o que precisava
ser adaptado em termos de Brasil, porque os manguezais daqui não eram
iguais aos do Caribe. Nossas amplitudes de maré são muito maiores, por
exemplo.
Havia novidade para eles também?
Sim, houve uma verdadeira simbiose. Quando comecei tinha um belo
trabalho da Feema [Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente], do
Rio de Janeiro. A Norma Crud Maciel estudava os manguezais do recôncavo
da baía de Guanabara, um trabalho belíssimo de 1979. Ela logo se
associou a nós, porque não tinha tanto espaço para a pesquisa acadêmica
em um órgão da administração pública. Foi um início que rendeu muito,
inclusive porque temos um laboratório em Cananeia, no litoral sul de São
Paulo, com estação meteorológica-padrão e uma série de dados
privilegiada. O manguezal é essa mistura de compartimentos: você pode
trabalhar nele como arquiteta, médica, engenheira, botânica, geóloga,
oceanógrafa.
Sua graduação foi em história natural. Essa formação ajudou a integrar esses compartimentos?
Muito. Tanto a graduação em História Natural quanto a pós-graduação em
Oceanografia sem limites, não só biológica. Para ler o manguezal é
preciso estar aberto. Não é só botânica, nem só dinâmica sedimentar ou
zoologia. É um pouco mais.
Aos 3 anos… Arquivo pessoal
Você também trabalhou com análise de impacto ambiental. Se falava disso na época?
Não. Era visível que alguma coisa estava interferindo no sistema, como
quando terminei meu doutorado no Saco da Ribeira, no litoral norte
paulista. A rodovia Rio-Santos estava em construção e ao mesmo tempo
iniciavam o primeiro píer, no Saco da Ribeira. Nessa época tive minha
primeira mestranda, a Sônia Lopes, hoje professora do Instituto de
Biociências, que foi trabalhar com as alterações na fauna de bivalves
nessa praia. A área já estava sendo alterada pela instalação de mourões
com produtos químicos para proteger a madeira contra apodrecimento, pela
alteração da granulometria da praia, e começaram a aparecer espécies
oportunistas. Vimos a dinâmica do ambiente respondendo a essas mudanças.
Quando comecei a trabalhar com manguezal, a lei brasileira havia
consolidado uma política nacional de meio ambiente, a Lei 6.938/81. Tudo
acontecia quase ao mesmo tempo.
Além de todos os aspectos presentes no manguezal, tem mais esse: é preciso conhecer legislação.
Exatamente. É uma corrida contra o tempo. Correndo e me valendo de
pesquisadores e pós-graduandos do Instituto Oceanográfico. Eu punha os
artigos novos em uma mesa no laboratório. Cada um pegava um livro ou
artigo para ler e apresentar para os outros, era preciso multiplicar os
esforços para tentar acertar o passo. Tudo acontecia muito rápido nesse
campo novo, da dinâmica do uso da zona costeira. Em apenas cinco anos se
abre uma estrada, se constrói um píer, se processa uma dragagem,
ocorrem derramamentos de óleo.
Quando você se tornou uma perita em análises de impacto ambiental?
Fui a perita em dano ambiental da primeira ação civil pública movida no
Brasil. Foi o rompimento do oleoduto da Petrobras próximo ao rio Iriri,
canal de Bertioga, no litoral de São Paulo. A lei é de 1981 e a
regulamentação da lei é de 1983. Em 14 de outubro de 1983 houve esse
rompimento e fui nomeada perita judicial por um juiz da vara de Santos.
Como era o trabalho?
Em primeiro lugar, tinha que descobrir o que medir para monitorar um
impacto de óleo sem nunca ter trabalhado com isso. Minha experiência era
com manguezais lindos, limpos, de Cananeia ou de outras áreas do
Brasil. De repente estava num manguezal cheio de óleo. Chegou a 1 metro
de altura no tronco das árvores, o sedimento empapado de óleo. Nós
seguimos até hoje o monitoramento da área mais impactada, um bosque
inteiramente morto. São mais de 30 anos e ainda há óleo enterrado.
Quando colhemos amostra de sedimento a uns 80 centímetros, tiramos o
testemunho e ainda saem bolinhas de óleo. O manguezal ali nunca voltou
ao normal, as árvores que nasceram eram de outra espécie, cresceram
pouco e estão morrendo.
Foi esse histórico como perita em impacto ambiental que a levou a
trabalhar na Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo nos anos 1990?
Eu mantinha contato com o Ministério Público de São Paulo desde 1983,
quando o Édis Milaré, um dos promotores que havia participado da petição
da ação cível no caso do rompimento do oleoduto, tornou-se secretário
do Meio Ambiente. Ele cumpriu uma representatividade de gênero nas
coordenações, escolhendo duas mulheres e dois homens. Eu tinha sob os
meus cuidados três institutos de pesquisa [Botânico, Florestal e
Geológico], a área de informática e a biblioteca. Era um desafio, não se
coordena um grupo de instituições centenárias de qualquer maneira. É
preciso entender o ritmo das pesquisas e dos pesquisadores e melhorar,
se puder. A biblioteca da secretaria era no 11º andar. Consegui passar
para o térreo e o número de visitantes aumentou rapidamente. Biblioteca
tem que ser uma coisa chamativa, e no térreo tinha uma sala envidraçada
com um jardim lindo fora. No período em que fiquei na secretaria, meu
currículo acadêmico não aumentou uma linha, embora saísse de casa às
6h30 da manhã e voltasse às 10 ou 11 da noite.
Os problemas eram muito diferentes do que você conhecia?
Eram, eu conhecia bem o litoral. Não tinha conhecimento acerca das
Unidades de Produção e de Conservação do interior do estado. Os limites
entre os produtores, o agrossilvipastoril, são muito complicados. Uma
pessoa põe uma cerca e diz que a área está protegida, mas não está
porque o vizinho não foi indenizado. Uma onça-parda come a galinha de
alguém, que mata a onça-parda. Comecei a viajar e fui alertada de que
estava muito ausente, então esclareci que nossos problemas estavam fora
da capital. Quando passou o primeiro ano, as coisas começaram a se
repetir, já não era novidade. Aí era a persistência, quanto tempo eu
conseguiria seguir. Cheguei ao final do mandato.
… e em 2013, no manguezal do rio Iriri três décadas após o derramamento de óleo. Arquivo pessoal
Seu laboratório trabalhou com valoração econômica do manguezal. Era uma abordagem nova?
Era um dos quesitos das ações civis. Uma das perguntas versava sobre o
valor do dano ambiental. Fui orientada a dizer que os danos eram de
inestimável valor e que seriam alvo de um futuro arbitramento. Depois de
escrever isso muitas vezes, comecei a achar que precisava me preparar
para quando chegasse esse futuro. Nessa época duas Monicas estavam no
laboratório Bioma, Tognella e Grasso, que tinham um instinto mais
economicista. Primeiro tinham bolsa de aperfeiçoamento e foram à Faculdade de Economia e Administração [FEA-USP] cursar a
disciplina básica de graduação para microeconomia. Na época, cada
pesquisador que fazia valoração econômica usava um método diferente. No
mestrado, cada Monica adotou um conjunto de métodos. Uma foi trabalhar
em Cananeia e outra em Bertioga: um mangue intocado e outro muito
comprometido. Nos primeiros resultados, o manguezal de Bertioga,
bastante alterado, valia muito mais que o de Cananeia. Descobrimos que
isso acontecia porque nessa situação se tem um substituto para calcular
um valor monetário. Quando o manguezal é alterado, começa-se a pagar
pelos serviços ecossistêmicos que até então eram gratuitos. Descobri que
era essa a charada: os números só ficam aparentes quando os serviços
deixam de existir.
E como se faz para pôr uma etiqueta de preço no manguezal?
Sou contra o preço. Uma coisa é precificação, outra é valoração. O preço
é uma parte muito pequena do valor. É muito mais correto transformar a
pena em ações que o poluidor ou degradador precisa cumprir. Quanto mais
rápido for o processo de condená-lo a cumprir, menos ele pagará. É um
processo educativo, o poluidor aprende que, se empurrar com a barriga a
tarefa de recompor, só vai lhe custar mais caro. Em 2011 o Ministério
Público do estado de São Paulo criou um grupo de trabalho para valorar
danos ambientais. Eu era a coordenadora acadêmica dessa equipe mista,
Ministério Público e academia, que por mais de dois anos trabalhou toda
uma diversidade de impactos ambientais e produziu guias de como
responder. Depois buscamos equações de como representá-los. O manguezal,
por exemplo, leva um número de anos para funcionar como ecossistema.
Não basta plantar. Antes de 20 ou 30 anos as árvores ainda não
constituem um ecossistema. A mesma coisa ocorre com a Mata Atlântica ou
com o Cerrado.
No caso do manguezal é fácil imaginar que os recursos pesqueiros têm um preço.
Mais do que isso, têm um valor. Das florestas tropicais, o manguezal é a
mais eficiente na fixação de carbono. Isso tem grande importância.
Junte a isso pousio para aves migratórias, área de berçário para
espécies comerciais de peixes, crustáceos e moluscos, a função cultural
de sincretismo religioso, de atividades artesanais do povo caiçara.
Aquele cenário verde meio estranho é, para eles, uma garantia de vida.
Eu não posso dar preço para esses serviços. Tive muita dificuldade com
essa questão dentro do Ministério Público, até que um dia tomei coragem
com um dos procuradores e pedi licença para um exercício rápido. Eu
disse: “Estamos falando de preço e valor. Veja o senhor, um procurador
do estado de São Paulo. Como ser humano, seu corpo é 70% água. Quanto
custa água? O senhor tem carbonato de cálcio, tem proteínas (podemos ver
quanto custa o ovo), o senhor tem alguns nutrientes, tudo isso tem um
preço de mercado. Posso ir em juízo e depositar esse preço que a gente
auferiu e então posso matá-lo. Agora, qual o valor? O senhor estudou em
quantas escolas? Teve atendimento médico desde pequeno. Foi para a
faculdade de direito, fez toda a evolução na carreira – advogado,
promotor, procurador… Isso é o seu valor, que não está no seu preço”.
Acho que consegui mostrar que o preço não representa nada.
Em 1966 com a bióloga Junia Quitete, em curso no Navio Oceanográfico Alte. Saldanha, da Marinha. Arquivo pessoal
E ao longo dessa trajetória você angariou brigas importantes,
como o cultivo de camarão em área de manguezal, que foi o que a levou
para essa área. Quais são as maiores ameaças aos manguezais?
Hoje eu acho que o maior dano é social. Já perdemos manguezais e nos
últimos anos estamos perdendo gente, é isso que me preocupa. Os
pescadores não podem mais chegar no estuário para pescar porque está com
cerca elétrica e podem ser mortos por jagunços. É um problema social e
de saúde. Os pescadores que vão trabalhar na despesca [recolhimento dos
adultos nos tanques] da carcinocultura ganham como boia-fria da cana,
sem garantias trabalhistas. Têm que lidar com o metabissulfito, usado
para o camarão não ficar preto, e trabalham sem máscara nem luva. Se vai
para o pulmão, essa substância mata. Um biólogo pode servir a várias fazendas, o veterinário também, por isso
gera muito pouco emprego e menos renda ainda. O Renato de Almeida, à
época pós-graduando do Bioma, trabalhou com o Índice de Desenvolvimento
Humano [IDH] entre 1990 e 2000 nos municípios principalmente do Ceará
com muitas fazendas de carcinocultura. O IDH não melhorou nada nesse
período. O dinheiro que sai da produção de camarão naquele município não
é aplicado ali, é investido em outros mercados.
E em termos de danos ao manguezal, imagino que tenha duas
partes: a retirada das árvores para pôr os tanques de criação e os
contaminantes químicos.
Exatamente. E em cinco anos, no máximo sete anos, aquela área já não
serve e eles avançam para outro manguezal. Em fazendas abandonadas,
quando se rompem os muros da carcinocultura, nasce mangue outra vez.
E dá para combater isso?
Doenças como as viroses do camarão cultivado dificultam a venda para o
mercado externo. Desde o começo se trabalha com um camarão nativo do
Equador, o Litopenaus vannamei. É uma espécie exótica, o que é proibido,
mas trazem em avião especial carregado com larvas, ou são produzidas em
laboratórios aqui no Brasil. Fungos e vírus deixam o sistema menos
complexo, mais vulnerável e se começa a perder biodiversidade.
E o mercado começa a rejeitar?
Com a mancha branca, causada por um fungo, é preciso adensar menos as
larvas nos tanques. Também tem que despescar antes, porque chega a um
ponto em que os camarões comem muito e não aumentam proporcionalmente de
peso, por causa da doença. Vendem-se então os camarões menores, que o
mercado internacional não aceita e essa produção em menor escala fica
para o mercado interno. Estive em uma carcinocultura no Piauí e vi que
no canal de entrada da água tem uma diversidade riquíssima de formas de
vida estuarina. Macroalgas, ofiuroides, até cavalo-marinho, uma coisa
linda. O canal de saída para o estuário não tem nada.
Como a nova lei florestal afeta o manguezal?
Eu me inscrevi para ser expositora na audiência pública do dia 18 de
abril no Supremo Tribunal Federal, mas não fui habilitada. Foram 22
expositores, com um peso muito grande para os defensores da lei. Da área
de manguezal da Amazônia Legal, Amapá e Pará, 10% estão disponíveis
para a carcinocultura. Do Maranhão para o sul, a proporção sobe para
35%. A nova lei florestal concedeu uma porção do manguezal, o apicum,
antes considerado de preservação permanente. O que eu teria contestado
nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade é que eles dizem que o
manguezal urbano, quando não tem mais função ecológica, pode ser
colonizado. Mas o que é função ecológica? Se o manguezal está lá, ele tem função ecológica. Era isso que eu queria explicar.
Em curso de mergulho durante a graduação em História Natural na Universidade do Brasil, RJ. Arquivo pessoal.
No resto do mundo o quadro dos manguezais é diferente?
É um ecossistema típico de regiões tropicais e subtropicais. No mundo,
equivale a litorais com alta densidade populacional. São áreas
costeiras, também altamente valorizadas por serem locais de portos e
resorts. No Sudeste Asiático instalaram muitas fazendas de cultivo de
camarão em cativeiro. Na China, no Vietnã, na Malásia e na Indonésia o
prejuízo social é impressionante. Quando começam a grassar as viroses
nesses crustáceos, os danos são muito grandes. Mas nesses países a renda
é muito baixa, os prejuízos não chegam a fazer diferença na economia
mundial. O litoral da América Central está arrasado pela carcinocultura,
mas tem também tráfico de drogas e guerrilha que comprometem muito mais
a sociedade e o meio ambiente do que aqui no Brasil. Vários colegas
pescadores já perderam a vida como resultado desses conflitos.
Como foi a formação do curso de pós-graduação em ciências ambientais, aqui na USP?
Em 1990 o professor José Goldemberg, enquanto reitor, sentiu necessidade
desse tipo de pós-graduação interdisciplinar e solicitou ao então
pró-reitor de Pós-graduação – o professor Ubríaco Lopes, da Faculdade de
Medicina – que formasse esse grupo. Ele chamou docentes de várias
áreas, que formularam um projeto e apresentaram ao Conselho
Universitário. No final de 1991 começou a primeira turma. É um programa
muito interessante, que até uns anos atrás era adido diretamente à
Pró-reitoria de Pós-graduação. Mas a reitora Suely Vilela exigiu que
todos os cursos de pós-graduação fossem albergados em unidades. Com a
presença do próprio professor Goldemberg no Instituto de Eletrotécnica e
Energia [IEE], fomos bem recebidos. O IEE manteve a sigla, mas passou a
se chamar Instituto de Energia e Ambiente.
Fora da universidade, você sempre teve envolvimento com extensão, com educação ambiental. Quais foram as melhores experiências?
Participar do Encontro Nacional de Educação Ambiental em Áreas de
Manguezal [Eneaam] desde a sua criação em 1993. As reu-niões são sempre
em áreas de manguezal. Já aconteceram encontros em vários estados do
país, sempre em municípios onde tem gente que vive associada ao
manguezal. É muito interessante o tipo de trabalho que dá para fazer com
o pescador, a marisqueira, o escritor de cordel, o indígena… O primeiro
passo é resgatar a experiência de todos. Tenho oferecido minicursos nos
quais não é preciso formação acadêmica. Dependendo de onde é feito, o
público é completamente diferente. Em Bragança, no Pará, tem um público
diferente de quando estamos no Espírito Santo. No Sudeste o manguezal é
visto como fedido e podre, lá no extremo norte é a riqueza deles. Tem
todo um sincretismo religioso entre os moradores do manguezal, “os
operários da maré”, é lindo.
Nos últimos anos você fundou uma ONG, o Instituto BiomaBrasil [IBB]. O que vocês fazem?
O IBB foi um desejo de meus ex-alunos. Como eu tinha me aposentado e o
IO decidiu que não continuaria as pesquisas com manguezais,
precisaríamos de uma maneira de manter essa identidade. Então combinamos
que eu participaria com meu nome, meu currículo. Mas eles que fazem o
trabalho: o Clemente Coelho Junior, professor da Universidade Federal de
Pernambuco, o Renato de Almeida, da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, o Ricardo Menghini, que está no Ministério Público do Estado
de São Paulo, a Marília Lignon, da Universidade Estadual Paulista em
Registro, e minha filha Claudia, que faz a parte multimídia e de
marketing. Não temos nenhum funcionário, manter uma ONG correta sai
muito caro. O IBB está absolutamente legal e tem tido projetos da
Fundação Grupo Boticário e do SOS Mata Atlântica. Os recursos
financeiros vão integralmente para as atividades de campo, com educação e
pesquisa, nós não somos remunerados. Atuamos na área de gestão e
conservação de zonas costeiras tropicais com ênfase no manguezal, usando
o nome que já era do laboratório. Trabalhamos com pessoas e com
projetos em áreas costeiras como coleta de lixo e melhoria de qualidade
de vida. O carro-chefe tem sido o guia Maravilhosos manguezais do
Brasil. É um guia do Mangrove Action Project [MAP], um projeto
internacional, que foi traduzido e aplicado em outros países. Aqui
resolvemos fazer a adequação dessa filosofia para a realidade
brasileira. Porque nossa realidade é diferente da do Caribe, da América
Central. Então foi reescrito: são 40 atividades práticas, sempre com um
texto introdutório e os conceitos. Damos cursos de capacitação usando
esse material, com dois dias e meio de atividades teórico-práticas com professores da rede pública
estadual e municipal de escolas em áreas com manguezal. Também montamos
uma rede em que os professores que participam depois podem seguir
trocando expe-riências. Tem dado muito certo.
Ao mesmo tempo você participa de um projeto grande que é o da baía do Araçá, financiado pela FAPESP. Como está?
Vai terminar no ano que vem, tivemos um ano de prorrogação. Estamos
escrevendo os artigos e eu estou plantando mangue nas pedras que enrocam
o aterramento do porto. Temos uma batalha porque o porto queria aterrar
a área da baía do Araçá. Como houve protestos veementes, o porto propôs
fazer uma laje a 1 metro de altura. Mas acaba de ser divulgada a
sentença judicial confirmando as duas liminares. Isto é: manteve as
liminares que cassaram a licença dada pelo Ibama. O órgão concedeu
licença para a laje porque a baía do Araçá estaria morta, mas foi
comprovada a vitalidade do ambiente. Nosso projeto é de ciência, não de
consultoria sobre o porto, mas como pesquisadores individuais nos unimos
ao Centro de Biologia Marinha da USP [Cebimar] para preparar os
documentos que embasam a defesa do Ministério Público Federal e
Estadual. Há poucos meses o Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo
Tribunal Federal, decidiu pela não construção da laje.
Enquanto isso você planta manguezal.
É. Medimos todas as árvores. São 400 e tantas árvores vivas. Uma que eu
plantei está indo em frente. A ideia é que seja emblemático, não
pretendo instalar um manguezal, é paisagismo. Mas ajuda a recuperar a
autoestima dos pescadores. Uma amiga me perguntou por que eu vou plantar
mangue ali, com o porto atrás. Eu disse: “Lembra daquele garoto chinês
da praça da Paz Celestial, de pé em frente à coluna de tanques? Eu sou
essa”.
Fonte: Entrevista na Revista FAPESP,
edição 244, junho de 2016, por Maria Guimarães
… e em 2013, no manguezal do rio Iriri três décadas após o derramamento de óleo