quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Reuniões globais de clima são 'frustrantes' porque estão longe da 'vida real', diz cientista brasileira

Autora de estudo inédito que será apresentado por cientistas da UFRJ na Conferência do Clima da ONU, que ocorre no Marrocos, chama atenção de prefeitos para debate sobre clima.

Ricardo Senra
BBC Brasil
 Suzana Kahn, uma das autoras do estudo do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas da UFRJ: "É preciso se aproximar do cidadão, da população. Quando se fala de metas, é difícil o engajamento da sociedade, até para cobrar." (Foto: Stefano Aguiar/PBMC )

Um relatório que será apresentado por pesquisadores da UFRJ (federal do Rio) durante a COP-22 - a conferência do clima da ONU, que começa nesta segunda-feira no Marrocos -, alerta prefeitos para impactos dramáticos do aquecimento em cidades brasileiras.
Segundo os pesquisadores do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), os municípios que não mudarem a forma com que lidam com água, transportes e gestão de lixo e resíduos enfrentarão problemas como desabastecimento e energia, hospitais superlotados, inundações e desmoronamentos, com impactos mais fortes nas regiões mais pobres.
À BBC Brasil, a engenheira Suzana Kahn, uma das autoras do estudo, diz que nota um abismo entre as discussões globais sobre clima, feitas hoje em cerimoniosas reuniões entre diplomatas, parlamentares e chefes de Estado, e a "vida real" das cidades.
"Há uma frustração. É tudo muito lento e isso gera um pouco de desânimo para quem acompanha. Se cria uma expectativa de solução e não é fácil mesmo. Coisas importantes acontecem, mas elas são pouco perceptíveis de longe", diz Kahn.
Por isso, ela explica, o estudo brasileiro analisou centenas de documentos e se concentra nas cidades e responsabilidades de prefeitos para consequências já perceptíveis do aquecimento global.
"Os centros urbanos são responsáveis pelo consumo de 70% da energia disponível e por 40% das emissões de GEE", afirma o relatório.
"As prefeituras precisam não apenas de inventários e propostas. Ainda estamos muito distantes da ação e isso tem que mudar", completa Kahn.
No Nordeste, por exemplo, a vazão menor de rios como o São Francisco e a migração acelerada para zonas urbanas contribuem para apagões que, por sua vez, trazem aumento de preços e falta d'água.
No Sul e Sudeste, o aumento do calor e das chuvas provoca enchentes e epidemias, como a explosão do vírus Zika e de doenças respiratórias.
"Os poderes municipais, locais, precisam estar em sintonia com os países. Não tem sentido o Brasil traçar um plano de ação sem ter em conjunto os planos de cada município, que é onde estão as pessoas expostas aos riscos", diz a cientista.
Desafios da COP-22
A última grande decisão mundial sobre clima foi tomada no ano passado, quando 195 países e a União Europeia ratificaram o Acordo de Paris, se comprometendo a manter o aumento da temperatura média do planeta "muito abaixo de dois graus" em relação aos níveis anteriores à industrialização.
Hoje, segundo o Observatório do Clima, corremos o risco de chegar a 2030 com o aumento "numa trajetória de 3ºC, algo incompatível com a civilização como a conhecemos".
"Está todo mundo contente, foi ratificado o Acordo de Paris e isso eleva o ânimo da tropa", afirma a pesquisadora da UFRJ. "Mas pôr isso em funcionamento é outra história."
A principal missão da COP-22 será definir uma data-limite para que se decidam as regras de aplicação do acordo. Um dos principais desafios é a obtenção de um consenso sobre como os compromissos firmados por um país poderão ser fiscalizados pelos demais.
"Como regular, como reportar as reduções, como fazer a contabilidade financeira do fundo. Essa COP-22 é a primeira a discutir essas regras. Ela não vai trazer nenhum resultado, não vai ter 'notícia' nenhuma. São movimentos incrementais, discussões sucessivas que vão construindo o processo."
Daí, diz Suzana Kahn, a importância de compartilhar responsabilidades com prefeituras, que estão na ponta deste processo.
Entre as sugestões práticas para prefeitos estão mudanças urbanas que permitam a redução de viagens motorizadas e o deslocamento de mercadorias (levar empregos do centro para os bairros onde as pessoas vivem, por exemplo), incentivo ao uso de bicicleta e uso de biocombustíveis.
O relatório também destaca mudanças que podem ser estimuladas dentro de casa.
"Desligar equipamentos quando não houver uso, manter fechados os ambientes com temperatura condicionada e dimensionar adequadamente velocidade de ventiladores e temperatura de condicionadores de ar; desligar aparelhos em standby, usar "tomadas inteligentes", que possuem interruptores próprios pode facilitar essa ação, substituir lâmpadas fluorescentes por LED; construir e reformar casas, considerando uma participação maior de iluminação natural", entre outros.
"É preciso se aproximar do cidadão, da população. Quando se fala de metas, é difícil o engajamento da sociedade, até para cobrar."
Crise ajuda a atingir metas, diz estudo
A estimativa das Nações Unidas é de que 91% da população brasileira viva em regiões urbanas nos próximos três anos - no último Censo, de 2010, o índice era de 84%.
O problema é que, hoje, segundo o relatório dos pesquisadores da UFRJ, mais da metade dos municípios já precisa de novas fontes de água.
Enquanto isso, até 2030, segundo os pesquisadores, "estima-se um aumento de 9% no consumo de eletricidade no setor residencial e de 19% no setor de serviços".
Os impactos das mudanças climáticas na saúde são os mais alarmantes. "O aumento de inundações e secas causará efeito devastador sobre a saúde, especialmente nas pessoas que vivem em comunidades mais sensíveis", diz o estudo.
"Com esse cenário, doenças como malária e dengue, mais incidentes nos países de clima tropical, são alguns dos problemas de saúde pública decorrentes do aquecimento global. As intensas ondas de calor também podem ter impacto nas doenças crônicas, como problemas cardiovasculares", prossegue o texto.
A ironia é que a crise econômica tem ajudado a desacelerar os impactos destas transformações.
"É por conta dela (da crise) que provavelmente vamos atingir nossas metas com mais facilidade. Crise reduz consumo, reduz energia... isso diminui a pressão sobre o uso dos nossos recursos naturais."
'Estado gasta muito e mal no Brasil'
Ao ratificar o acordo de Paris, o Brasil se compromete a cortar emissões de gases em 37% até 2025 e se propõe a aumentar a redução para 43% em 2030, tudo em comparação com níveis de 2005.
O país também se comprometeu a reconstruir 12 milhões de hectares de florestas e levar o desmatamento da Amazônia Legal (como o governo denominou uma área que abriga todo o bioma Amazônia brasileiro e partes do Cerrado e do Pantanal e engloba os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do Maranhão) a zero até 2030.
Mas como investir em tudo isso em meio à maior crise financeira e política dos últimos tempos?
A pesquisadora explica que a maior parte das transformações não exige investimentos gigantes, como a construção de novas usinas ou redes de metrô.
"Há uma série de lobbies no Brasil, uma forma muito tradicional de fazer política sem pensar no interesse coletivo. E sempre se olha para um horizonte de muito curto prazo. Estas são coisas que ultrapassam quatro anos de mandato", diz.
"Se você pegar o orçamento inteiro de uma cidade, verá a quantidade de dinheiro que vai para manutenção da máquina do Estado. O Estado gasta muito e gasta mal com ele mesmo. Investir em gestão de recursos naturais e resíduos não vai impactar tanto nos recursos municipais."
"A questão é muito mais política que financeira", conclui.

Fonte: G1 Natureza




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