POUCA COISA NO MUNDO é mais imprecisa do que a cientometria, a ciência 
que usa números para medir a qualidade da ciência. Essa disciplina tem 
seu mérito e sua utilidade, mas é vítima de uma ironia da condição 
humana: estudos científicos são trabalhos que buscam construir 
conhecimento com a maior objetividade possível, mas só podem ser 
avaliados com justiça quando alguém tem paciência para analisá-los um 
por um, subjetivamente, sem apelar demais para os números da 
cientometria.
Apesar de essa afirmação soar paradoxal, a maioria dos cientistas tende a
 concordar com ela. Os abusos cometidos contra esse princípio, porém, 
são tão comuns que motivaram agora uma campanha ética na comunidade 
acadêmica. Um grupo de pesquisadores está querendo acabar com o uso 
indiscriminado do chamado fator de impacto, o índice cientométrico 
considerado por muitos a medida da qualidade de uma revista científica.
Num manifesto batizado
 de DORA (Declaração sobre Avaliação de Pesquisas, acrônimo em inglês), 
lançado em San Francisco, um grupo de cientistas pede que o fator de 
impacto das revistas em que estudos são publicados deixe de ser usado em
 decisões importantes. O documento pede que esse índice seja ignorado em
 decisões sobre contratação, premiação, promoção e financiamento de 
cientistas.
Para entender o problema em torno do fator de impacto, é preciso 
conhecer um pouco melhor a dinâmica das referências que cientistas fazem
 uns aos outros em trabalhos científicos. A base da cientometria está na
 análise das redes de citações —as menções que um estudo faz a outros 
estudos. Trabalhos mais importantes tendem a ser mais citados que 
trabalhos irrelevantes, e toda a lógica da cientometria se constrói em 
cima disso. O que ela nem sempre leva em conta, porém, é que cientistas 
sabem como alavancar artificialmente as citações a seus próprios 
trabalhos.
Um pesquisador pode pedir a um colega que o cite para depois retribuir o
 favor. E se um cientista fatiar o resultado de uma pesquisa em vários 
estudos (em vez de publicar tudo num único trabalho mais completo), pode
 vir a receber mais citações. Usando essas táticas de mérito duvidoso, 
um pesquisador pode turbinar sua produtividade e sua aparente influência
 quando estas forem estimadas partir do número de citações por estudo 
publicado.
Há alguns métodos estatísticos para impedir que distorções apareçam, mas
 a eficácia de cada um depende muito da área da ciência à qual é 
aplicado. Algo que costuma ser aceito como um selo de qualidade de um 
estudo, porém, é o fator de impacto da revista em que o trabalho é 
publicado. O fator de impacto é medido pelo número total de citações que
 uma revista recebe em dois anos dividido pelo número total de artigos 
publicados no período.
A aceitação em um revista de alto impacto é encarada com um cartão de 
visitas de gala para um estudo. A disputa para entrar nessas publicações
 é acirrada, e os comitês que analisam os artigos submetidos costumam 
ser muito rigorosos. Cientistas com muitos trabalhos publicados  em 
periódicos como “Science” e “Nature”, por fim, acabam se cacifando para 
ocupar cargos mais altos e receber verbas maiores.
Mas há uma coisa na ciência que é um segredo de polichinelo: a vasta 
maioria dos estudos publicados em revistas de alto impacto, na verdade, 
não é muito influente.
O “Journal of Cell Biology”, uma revista de alto impacto que se 
comprometeu a adotar as medidas propostas pelo DORA, explica o problema 
em seu editorial desta
 semana: “O fator de impacto de uma revista científica pode ser 
impulsionado por apenas uns poucos artigos altamente citados, mas todos 
os artigos publicados em uma dada revista, mesmo aqueles que nunca são 
citados, são tidos como detentores do mesmo impacto.”
Essa campanha ética começou no campo da biologia celular por ser uma 
área onde o fetiche do fator de impacto é particularmente nocivo, mas 
isso se estende por todas as ciências naturais. Outro problema por trás 
dos fatores de impacto é que áreas da ciência muito concorridas tendem a
 ver a formação de “panelinhas” de cientistas que dominam algumas das 
publicações mais disputadas. Isso não é novidade, e todo pesquisador 
sabe disso.
Um dos problemas apontados no manifesto é que muitos estudos preferem 
citar artigos de revisão no rodapé, em vez de usarem referências a 
descobertas originais. Isso prejudica o mérito individual de estudos 
realmente inovadores e faz com que várias revistas com a palavra 
“review” no nome adquiram impacto altíssimo.
Justiça seja feita, a culpa de tudo isso não é da cientometria. O fator 
de impacto foi criado para orientar bibliotecas sobre quais revistas 
assinar, não para avaliar a qualidade da ciência publicada nelas. A 
própria Thomson Reuters, empresa que faz o levantamento sobre fator de 
impacto hoje reconhece isso em sua definição sobre
 o índice. E uma das recomendações mais diretas do DORA é que revistas 
deixem de alardear seus fatores de impacto em suas campanhas 
promocionais.
Resta saber se a campanha contra o fator de impacto vai sensibilizar a 
comunidade científica. Se o movimento ficar restrito a uma meia dúzia de
 pesquisadores, instituições e publicações, aqueles que aderirem podem 
sair prejudicados no fim. Mas algumas grandes revistas já assinaram o 
manifesto, incluindo a “Science”, que publicou um editorial sobre
 o assunto. A “Nature” rejeitou o documento, alegando que há itens 
demais agrupados numa declaração só, o que generaliza demais o problema.
 Uma demanda do DORA claramente difícil de atender é que a Thomson 
Reuters abra de graça o banco de dados que usa para calcular o fator de 
impacto. A “Nature” se declara contrária a abusos no uso do fator de impacto, porém, e já reforçou o ponto em vários editoriais.
Agências de fomento de pesquisa, como o brasileiro CNPq, têm procurado adotar critérios mais
 específicos e menos cientométricos para conceder suas “bolsas de 
produtividade em pesquisa”. Mas isso não impede que revisores 
individuais deixem de ser seduzidos por fatores de impacto maiores.
Pessoalmente, tendo a concordar com alguns argumentos da “Nature” para 
não assinar o documento. Independentemente do fator de impacto, algumas 
publicações sempre terão mais prestígio que outras. E é bom que exista 
um mercado onde diferentes cientistas disputem espaço por mais atenção. 
Jornalistas sabem que a probabilidade de uma pesquisa importante sair na
 “Science” é muito maior do que no “Australasian Journal of Applied 
Nanoscience”.
Com o financiamento à ciência mundial ainda abalado pela crise, não está
 claro se medidas paliativas como essa vão diminuir o clima de 
canibalismo e de vale-tudo que está se instaurando em algumas áreas da 
ciência. Mas se alguém tem de sair perdedor, que pelo menos as regras do
 jogo sejam mais claras. O DORA tem um mérito importante nesse aspecto.
 Capas de algumas das revistas científicas indexadas com maior fator de impacto (Imagem: reprodução)
Capas de algumas das revistas científicas indexadas com maior fator de impacto (Imagem: reprodução) 
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